quinta-feira, 19 de julho de 2007

Uma Pilha de Pratos Na Cozinha, de Mário Bortolotto


Se tem uma coisa que me assusta é um texto em que as personagens vociferam frases escandidas, como se fossem poemas da pós-modernidade. Porque o que me pega é o fato de conseguirem dizer tanta coisa sem tanto. Resumir o problema da humanidade (ou da falta de) com aforismos dignos de um Nietzsche, tratar da vida e seus complexos meandros e retratar seres ficcionais com perspicácia é obra de dramaturgo amadurecido. E este é o caso de Mário Bortolotto. Depois de tantas peças escritas, seu nível de excelência, pode-se dizer, atingiu um grau de amadurecimento interessantíssimo.

Uma Pilha de Pratos na Cozinha foi concebida para o projeto E Se Fez a Praça Roosevelt em Sete Dias, e segue em cartaz no Satyros Um. De todos os textos encontrados no projeto, dois se destacaram: o de Roveri (A Noite do Aquário) e, agora vejo, o de Bortolotto. O que temos aqui é a história de Júlio (Otávio Martins), um misantropo, que está enclausurado em seu apartamento por conta própria enquanto sua pilha de pratos cresce na pia. Chegam três presenças em série que vão tirar a misantropia dos eixos: seu amigo Daniel (Alex Gruli), um amigo sanguessuga fracassado, o síndico do prédio e "homossexual enrustido" Breno (Eduardo Chagas) e Cris (Paula Cohen), uma mulher que tem um pequeno problema e que, por conta dele, quer se resolver com Júlio rapidamente.

Logicamente, sem uma certa violência interior contida, referências norte-americanas e jazz, não teríamos uma peça de Mário Bortolotto. Devidamente salpicadas, as personagens vão soltando frasezinhas aqui e acolá e os aforismos vão enchendo o ambiente. Tiradas ácidas, sarcásticas e inteligentes entremeadas com a inação das personagens, que sabem bem como analisar suas próprias vidas, mas não conseguem jamais se mover. A inércia as move, assim como a personagem Júlio que se esmera em permanecer-se sentada quase todo o tempo, bebendo e fumando. A inação quase em seu limite. Como se o movimento do mundo e seu tempero agridoce justificasse a análise apenas. Como se quisessem reconstruir o significado do mundo como filósofos pós-modernos que são. Mas, para ser Platão, precisa-se de mais do que álcool e nicotina.

Quem sabe bem disso é Otávio Martins, que aproveita a composição e destila veneno para todos os lados, sem um pingo de prazer. "Eu sou um misantropo", Júlio diz, e Otávio deixa transparecer que ter ódio pela humanidade não quer dizer que aplicar piadas e atirar sarcasmos faça de sua personagem um sádico. Pelo contrário, não há prazer em querer que todos explodam. Alex Gruli e Eduardo Chagas exploram o que há de importante de suas personagens, apesar de um pequenino mas nada incômodo exagero de Gruli. Paula Cohen, por fim, parece ser a personificação do alívio ao entrar, mas o entendimento da personagem Cris frente à morte é mais do que qualquer descoberta pode transcender e o peso de tudo aquilo cresce. Cohen segura a expressão, o sentimento, e deixa que Otávio pise nela mais e mais para depois aplicar o contragolpe final.

Aliás, o final. Muito comentado por aí. Eu esperava uma coisa surpreendente, mas é a beleza que sobressai. Reside na poesia. Se o texto todo coloca metralhadoras nas bocas das personagens, o final fala pelo silêncio. Ou pela trilha. "The Healing Game", de Van Morrison. Enrolada na situação, uma das personagens finalmente, nesta cena derradeira, descobre que precisa sim desaguar tudo antes de ser algo. Poeticamente, chove lá fora, onde esta personagem se lavou antes de voltar à cena. Chora essa personagem frente à súbita descoberta da vida através de uma morte que está próxima. E a pilha de pratos está, efetivamente, sendo lavada. Forte. No lugar dessa personagem, não sei se atingiria essa grandiosidade de herói. Talvez eu apenas quebrasse todos os pratos ao invés de lavá-los.


Uma Pilha de Pratos na Cozinha. Direção e texto de Mário Bortolotto. Com Otávio Martins, Alex Gruli, Eduardo Chagas e Paula Cohen. Em cartaz às sextas, sábados e domingos no Espaço dos Satyros Um, às 22h30.

Um comentário:

SoTellMe.. disse...

Hello, I am of passage on your site and I benefit from it to greet you! Good continuation! Vinc